Demorei muitos dias a escrever isto e depois de o ter escrito, fiquei muito tempo a pensar se deveria publicá-lo. As minhas tatuagens são mesmo algo muito pessoal para mim e tirando as que ficam inevitavelmente expostas no verão, não faço questão de as andar a mostrar. À parte isso e contraditoriamente, apetecia-me partilhar o que representam para mim, porque dizem muito daquilo que sou e cada uma delas tem uma história para contar. 

Era ainda uma adolescente quando fiz a primeira tatuagem. Tinha uns 16 ou 17 anos. Escolhi tatuar um escorpião porque andava numa fase mais gótica e achava piada ao dark side das coisas. Tatuei-me no tornozelo, recorrendo aos serviços duma esteticista. Os anos passaram e apesar de ter deixado de me identificar com a tatuagem de um escorpião, ela ainda representava uma fase da minha vida e por isso achei que valia a pena mantê-la. Há três anos decidi que estava na altura de melhorá-la. Estava a ficar apagada e era apenas o contorno de um escorpião, sem grande expressão. O Jelle (o tatuador) achou que por não ser muito grande e não estar especialmente bem feita era difícil trabalhá-la e aconselhou-me a fazer um cover com um escorpião maior. Pensei no assunto mas não me fazia sentido.

Já desde algum tempo atrás pensava que se um dia fizesse uma nova tatuagem, seria a de uma coruja. Com a minha mãe aprendi em pequena a temer as corujas pela superstição de estarem associadas à morte. Com o meu pai aprendi mais tarde a admirá-las pelo animal lindo que são, de olhar penetrante e voo suave e silencioso. O som das corujas soa-me a família, a lar doce lar, porque um casal delas nos visita muitas vezes. Pousadas nas árvores do jardim piam pela noite dentro e no Verão o som entra pelas janelas entreabertas. Além de tudo isto, as corujas simbolicamente estão associadas à sabedoria e eu, estando na altura no mês de entrega da minha dissertação do mestrado, tive perfeita noção que ela era também uma representação símbólica da fase em que me encontrava. Motivos não faltavam para optar pela coruja e assim foi. O escorpião ficou escondido atrás de uma coruja que culmina num bando de pássaros a voar, pela minha ânsia de ir, de experimentar e aprender com a vida. Representam ainda a partida de um ciclo da minha vida para outro, com o fim de dois anos a estudar, a aprender e trabalhar em simultâneo, o que resultou num imenso cansaço, mas também numa enorme alegria e sentimento de objectivo concretizado.

Quem já se tatuou uma vez sabe que muito dificilmente a coisa fica por aí. Uns meses mais tarde voltou essa vontade de marcar o corpo. Estando numa fase de reflexão sobre a vida, percebi que há coisas que são transversais e duram para sempre. O amor dos meus pais e pelos meus pais assume uma proporção gigante, como acho que deveria ser. Por isso tatuei as iniciais dos nomes deles, por cima de uma âncora que para mim representa o porto seguro que são para mim, mas também essa ligação com o mar que me tranquiliza e me acalma, com esse Algarve que me completa. É uma tatuagem das minhas raízes e a mais dolorosa que fiz, por ser cheia de detalhes e estar situada na zona das costelas. Depois disso pensei que ficava por aí. Mas as dores passam, esquecem-se e em Outubro de 2014, depois do regresso das minhas tias à França pós férias, decidi que a ideia recorrente de tatuar no pulso um trevo de quatro folhas fazia mais sentido que nunca. Foi o verão em que mais usufrui da companhia delas. Quando crescemos há coisas como a família e os amigos que se tornam centrais e que valem mais do que tudo o resto. É esta maturidade no sentir e no pensar que tornou esta vinda delas tão especial.

A história do trevo vem de 2011, quando estive no sul de França com o Sérgio, a passar férias na casa das minhas tias. De férias juntos no estrangeiro pela primeira vez, visitei as minhas tias, o que também ainda não tinha feito. Foi o rever dos meus primos de quem só tinha vagas lembranças de quando nos visitavam em Portugal, era eu ainda muito pequena. Num dia em que estávamos na varanda carregada de flores da minha tia Aura, ela retirou da terra para me dar uns bolbos de trevos de quatro folhas. Trouxe-os para Portugal, vingaram e ainda hoje o trevo de quatro folhas me faz lembrar aquelas férias, aquele aconchego da família e aquele mimo das tias que estão longe. No fundo, as flores são, ainda hoje, na minha família, um interesse transversal a todos.  



A história das minhas tatuagens termina, para já, com a última frase do poema "Tabacaria" do Fernando Pessoa: "tenho em mim todos os sonhos do mundo". Fernando Pessoa faz-me lembrar a secundária, uma professora tresloucada de português que tínhamos e que era uma figura magra, com uns maneirismos diferentes e um ar um tanto desengonçado. Enfeitada com uns acessórios diferentes e umas roupas giras, tinha uma presença eloquente, aquela lisboeta solitária e independente que se instalou na nossa pequena terra. A professora jovem que me cativou mais que todas, que comigo partilhava o interesse pela trilogia do Senhor dos Anéis, que veio à nossa festa colectiva de 18 anos e trouxe uma polaróide, divertindo-se connosco pela noite dentro. Estranhamente não me lembro do nome dela, mas lembro-me que era uma professora com letra grande e ideias revolucionárias. Em vésperas de exames nacionais, recebeu-nos na sua casa, o pequeno apartamento alugado na avenida, para estudarmos para o exame nacional de português. Ensaiou connosco uma peça de teatro sobre os heterónimos do Fernando Pessoa, que fez alguns elementos da minha turma brilharem no cine-teatro. Todos sentimos muito orgulho daquele trabalho. Com ela, por essa desconstrução despreocupada do poeta, aprendi a achar-lhe piada. Mais tarde, quando me cruzei com o poema "Tabacaria", percebi que queria uma parte dele em mim, pela interpretação que faço dessa primeira parte e pelas lembranças que me traz de uma fase tão diferente e marcante da minha adolescência. Foi uma fase partilhada com pessoas que ficaram para a vida, memórias que não se apagam e momentos que também eles me definem.

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."


Foto 1 | Filipa Biel

5 comentários

  1. Partilho da opinião que são muito pessoais, apesar da história que traduzem. :)Quem sabe, mais tarde?

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  2. Tatuagens podem ser muito bonitas e íntimas!

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  3. Apaixonada como sou por tatuagens concordo que elas têm/devem ter sempre um significado para nós. Fazer só por fazer, para mim não faz sentido! Por isso nunca me arrependo nem me canso das minhas.... pois o significado esta lá ;)

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