Era o fim de uma manhã de sábado e havia uma silenciosa azáfama no local onde decorre o mercado semanal cá da terra. Os feirantes desmontavam as suas bancas e eu vinha do trabalho, passando a pé numa rua mesmo ali ao lado. Tinha uma t-shirt largachona vestida, uns shorts de ganga e uns stilettos calçados. Por isso ou por outro motivo qualquer, durante o percurso até chegar ao carro tive que ouvir as bocas de dois cabrões que inromperam do nada, como se tivessem o direito de comentar sobre as minhas pernas, sobre o faço-te isto e aquilo e sabe-se lá mais o quê. Não passava mais ninguém além de mim e à excepção daquelas duas almas todos os restantes se mantiveram ocupados nas suas tarefas. Quis-me parecer que éramos só eu e eles e eu a ver-me tão vulnerável. Não me senti minimamente lisonjeada, apenas apressei o passo para chegar mais rápido ao carro e deixar de os ouvir. Senti uma raiva crescente dos dois por me tratarem como um objeto e por perceber que ser mulher, nos tempos que correm, ainda é, entre tantas outras coisas, isso: o não poder vestir o que queremos e circular na rua sem que estejamos sujeitas a este tipo de situações.
  
Apeteceu-me responder-lhes que sou melhor do que eles, que não teriam possivelmente inteligência suficiente para me acompanhar numa conversa e que me interessam homens que vêm numa mulher mais do que as pernas, o cu e as mamas. No entanto nada disse porque não os achei dignos de que os olhasse, sequer, nem que baixasse a cabeça. Caminhei como se nada se passasse, ardendo por dentro. Abafei os pensamentos que não eram mais do que gritos de raiva, tentativas de não me esquecer de mim mesma e do meu valor. Chicoteei as palavras daqueles estupores mentalmente, e desejei chegar ao meu porto seguro. Senti-me humilhada, irritada e constrangida, mais ou menos como me sentiria se tivesse sido por eles tocada. As palavras têm esse poder de usurpar, tanto como os gestos, a vida que há em nós e naquele dia, naquele instante, a cada passo que dava, desejei desaparecer rapidamente daquele lugar.

Hoje li esta notícia e foi ela que despoletou em mim a recordação deste episódio (que aconteceu neste verão). Pouco sei sobre a especificidade do enquadramento legal dos piropos na lei portuguesa (foram recentemente considerados crime, certo?) e admito que alguns podem até ser sentidos como lisonjeadores, mas também compreendo que esta mulher se tenha considerado vítima de um crime ainda que não lhe tenham efetivamente tocado. Há muitas formas de ferir o outro e é sabido que as palavras podem acarinhar ou bater tanto quanto as mãos de alguém, mimando ou minando o ego assertivamente. Enquanto a lei (ou antes, a aplicação da mesma) não nos protege efetivamente e estas questões continuam a ser tratadas com alguma subjetividade, o bom seria que os homens compreendessem, de uma vez por todas (felizmente alguns já compreenderam), que as mulheres, tal como os restantes seres vivos, merecem, tão simplesmente, respeito. 

E vocês, o que pensam e sentem em relação a isto?

[Pic by unknown author]

5 comentários

  1. Concordo, piropos são inadmissíveis e fruto de sociedades machistas e retrógradas. Felizmente existem sociedades mais evoluídas em que isso não acontece. Portugal tem ainda um longo caminho a percorrer!

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  2. Acho que há que saber distinguir piropos patetas de ofensas gratuitas... por vezes cai-se no exagero de achar que até um "com tanta beleza o meu dia ficou melhor" de um imbecil "que cu, fazia-te e acontecia-te". Eu fico profundamente embaraçada quando ouço piropos maldosos... acabo sempre por baixar a cabeça e ignorar.

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    1. Não deveríamos ter que os ouvir sequer, essa é que é a questão. Tem a ver com civismo não andarmos a mandar bocas uns aos outros na rua só porque apetece.

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  3. É uma vergonha ainda existirem este tipo de comportamentos, especialmente na via pública :(

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