Queria ter feito um diário de viagem da road trip por Marrocos, mas tudo o que consegui foi uma reportagem fotográfica e tirar alguns apontamentos pelo caminho nas (poucas) horas em que não estava a conduzir. Muito do nosso tempo foi passado na estrada porque tivemos que percorrer uma longa distância até chegar ao deserto, em apenas sete dias de viagem. Já tive anteriormente oportunidade de publicar um apanhado geral da viagem e uma seleção das fotos no Off Sight de dezembro. Essa primeira publicação foi escrita passada apenas uma semana de ter regressado, quando as emoções ainda estavam ao rubro e as memórias muito frescas. Mais complicado vai ser agora, passados quatro meses, reviver cada etapa desta fantástica aventura. Acho, ainda assim, que é uma viagem que merece ser partilhada, e por isso começarei pelo primeiro dia, quando aterrámos em Marraquexe, vindos de Sevilha.


Chegámos noite cerrada, quando aterram os últimos voos e o aeroporto começa a adormecer. Tivemos uma confusão com o cartão de crédito que inviabilizou que levantássemos logo o carro e portanto às onze da noite o balcão da rent a car fechou na nossa cara e nós ficámos sem transporte próprio para ir para o hotel. Viríamos depois a perceber que foi melhor assim, porque não havia a mínima hipótese de encontrarmos sozinhos o hotel nas ruelas labirínticas de Marraquexe, sobretudo à noite quando tudo parece igual. Na verdade descobriríamos depois que algumas das coordenadas dos alojamentos onde ficámos estavam erradas, e que não havia forma de chegarmos lá sozinhos. Ficou-nos a dúvida se os marroquinos não sabem tirar coordenadas, ou se será um dos seus esquemas para nos obrigar a contratar transferes ou guias locais. 


Fomos de taxi até onde foi possível. O taxista arranjou-nos um guia para nos conduzir a pé pelas ruelas até ao Riad Hcekarram. Lembro-me dos cheiros intensos quando saímos do carro. Havia um carrinho de venda de comida de rua e senti de imediato o cheiro reconfortante da carne grelhada e das especiarias. Pelo caminho cheirou-me também a humidade, mofo e mijo de gato, entre as ruas, arcos, mesquitas e vielas. Passámos muitas vezes por homens a circular apressados de cabeça encolhida entre os ombros, nos seus trajes compridos e largos, e algures havia um carro de mão com uma fogueira e o pessoal de chinelos a aquecer-se, no meio da rua. O guia pelo caminho começou a falar-nos do Cristiano Ronaldo, nós tínhamos todo o ar de turistas a puxar os trolleys, e pensei para mim que estávamos completamente vulneráveis.


No dia seguinte achámos melhor não arriscar perder-nos e pedimos no hotel transporte para o aeroporto, para ser mais rápido. Tínhamos que arranjar um carro e começar rapidamente a viagem para a El Jadida, a antiga cidade portuguesa de Mazagão. Já com carro voltámos à cidade para tratar do câmbio do dinheiro. Dirigimo-nos à Praça Jemaa El Fna onde acabámos por almoçar, depois de encontrarmos a casa de câmbio do Hotel Ali. Disseram-nos no Riad que aí era um bom local para se trocar dinheiro, e não queríamos iniciar a viagem sem ter esse assunto tratado, porque não sabíamos que tipo de serviços íamos encontrar nas outras cidades. Descobrimos depois que o que não faltam são lojas de câmbio por todo o lado.


Quando iniciámos a viagem de carro deu-se o choque inicial do confronto com o trânsito de Marraquexe. Apesar do carro estar assegurado contra todos os riscos, não queríamos perder tempo com acidentes e, quando saí do parque do aeroporto, estava apreensiva com toda a confusão à minha volta. Haviam motas a passar por todo o lado, carros, semáforos, placas, pessoal a parar no meio das rotundas para eu passar (what the fuck?), pessoal a pisar traços contínuos, e as passadeiras.... bem.... ninguém as respeita, só servem para enfeitar a estrada. Ninguém faz um pisca para sinalizar uma mudança de direção, e ninguém respeita a regra de proibição de ultrapassar pela direita, o que obriga a atenção redobrada. Há policiamento em todo o lado na cidade, e ninguém parece estar preocupado com isso. Em suma, é uma anarquia. Anarquia à qual me habituei num ápice, e em coisa de dez minutos já tinha percebido que até é mais fácil e libertador conduzir assim, sem o respeito impreterível por todas as regras. 


No caminho para El Jadida começámos a comentar que é um país com boas estradas, boa sinalização, muito policiamento, e em que a anarquia termina a cada placa que nos obriga a circular entre os 100, 80, 60 ou 40 quilómetros/ hora. Na verdade acho que conduzir fora das cidades é desafiante porque as estradas são boas e a tendência natural quando estamos a papar quilómetros, é acelerar. Pelo que me pareceu, basta haver uma casa no meio do deserto para aparecerem logo as placas de redução de velocidade, o que é chato quando temos o tempo contado. Volta e meia aparecia o sinal a indicar a presença de radar, por isso percebi que tinha mesmo que cumprir os limites estipulados. Nesse troço da viagem vimos um Marrocos pobre, com paisagens áridas e terras de cor clara e arenosa, a perder de vista. Percebi que apesar da paisagem, desprovida de vida durante muitos quilómetros, haviam aqui e ali, perto dos aldeamentos, sistemas elaborados de cultivo com aproveitamento e distribuição de água. Vimos muitos cavalos e burros a servir de meio de transporte para pessoas, ou carga, e até a puxar arados para cultivar a terra, como aqui já não se utiliza. O percurso para El Jadida não é o mais bonito em termos de paisagem, mas faz-se bem e sem complicações. 



Em El Jadida ficámos hospedados no Maisôn d'hôtes Cités Portugaise. Chegámos já de noite porque parámos no caminho para ir ao supermercado abastecer-nos com alguns snacks para os próximos dias. No Carrefour comprámos água e umas bolachas, mas percebemos que o melhor era abastecer-nos nos mercados locais. Aquele supermercado, dentro de um shopping, não era claramente acessível para o marroquino comum, e achámos tudo muito inflacionado, até mesmo comparando com os preços praticados em Portugal.


No hotel fomos recebidos por um jovem vestido com roupas de marca, a sua gata e o seu cão. Percebemos que o negócio era dele, e que era também a sua casa. Foi o único hotel com animais de estimação, e senti-o muito acolhedor, talvez por isso. Foi fácil localizá-lo porque estava dentro das muralhas da antiga cidade portuguesa, e quando estacionámos o arrumador indicou-nos o local (o estacionamento é pago ali e na maioria dos locais). O pequeno-almoço foi servido no terraço à hora que nós pedimos, um pouco mais cedo do que o horário estipulado. Apesar do frio por estarmos na rua de manhã cedo, foi bom apanhar ar enquanto comíamos, ver o mar no horizonte, e ouvir as gaivotas.


Não faltavam restaurantes para jantar nessa noite em El Jadida, mas quando estávamos a passar pelo mercado não resistimos ao fantástico cheiro das sandes de carne, por isso acabámos sentados em bancos frágeis de plástico, a comer ao lado do lixo que se acumulava no chão, atrás do vendedor das sandes. Já não me lembro exatamente quantos dirhams nos custou a refeição, mas achámos uma bagatela absurda. Foi uma das melhores refeições que comemos na nossa estadia. Lembro-me de pensar que não deveríamos estar a jantar ali, que a sandes tinha salada à mistura (não recomendável por não ter sido cozinhada), e que ainda íamos arranjar uma intoxicação alimentar logo no início da viagem. Esqueci tudo isso quando dei a primeira dentada e me soube tão bem. Teríamos repetido não fosse um gato ter provocado a queda dos pães que estavam a ser usados para as sandes, e não fosse o vendedor os ter apanhado do chão imundo, e continuado a usar nas refeições como se nada se tivesse passado. Nós não ficámos doentes, e já era tarde para nos importarmos com isso.


No mercado comprámos nessa noite fruta e pão para petiscar entre refeições, nos próximos dias. Como o nosso interesse na cidade era conhecer a parte portuguesa, ficámos-nos pelas muralhas, pelas ruelas no seu interior, e pela cisterna. As casas preservam alguns traços arquitectónicos nossos, e o mar ficava ali tão perto que lhe sentíamos o cheiro e a humidade. Lembro-me do som das gaivotas que pairavam por todo o lado, e também da humidade escura que se fazia sentir dentro da grande cisterna que visitámos. 

2 comentários

  1. Adoro as fotografias :) Marrocos é um destino que quero mesmo, mesmo visitar um dia e em roadtrip parece perfeito :)

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    1. Sim, não te fiques só pelas cidades principais, é um país muito diverso e acho que só se percebe isso quando se visita mais do que uma cidade. Em road trip dá para ter uma noção mais real do país, parece-me.

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